Nova lei de improbidade garante segurança jurídica a empresários e combate abusos na decretação de indisponibilidade de bens

A qualidade de beneficiário direto do ato ímprobo deverá ser fundamentada e os supostos benefícios pessoais recebidos demonstrados igualmente.

A recém-publicada lei 14.230/21 alterou significativamente a Lei de Improbidade Administrativa – LIA, trazendo importantes inovações destinadas a afastar injustiças cometidas pelo seu uso desmedido e irracional por parte dos órgãos de fiscalização. É válido destacar no presente trabalho, a previsão expressa de que os sócios, cotistas, diretores e colaboradores da pessoa jurídica não respondem pelo ato de improbidade que venha a ser imputado à ela, bem como à necessidade de desconsideração da personalidade jurídica para o atingimento do patrimônio deles pela indisponibilidade de bens.

Nas ações de improbidade administrativa, é comum figurarem no polo passivo da demanda os sócios ou diretores da pessoa jurídica que em tese concorreram para a prática do ato ímprobo, em razão de ostentarem apenas, e tão somente referida qualidade, sem que se demonstre ou mesmo se indique qual sua participação. Isso, pois, se firmou na jurisprudência o entendimento de que se aplicaria para tais casos o princípio in dubio pro societate, bastando para justificar a legitimidade passiva, a identificação de potencial responsabilidade pela prática dos atos apurados, e que a manutenção como réu se “justificaria” pela necessidade de “apuração de eventual responsabilidade por ato de improbidade administrativa” (REsp 1789492/PR).

Entendimentos assim, com a devida vênia, violam a presunção de inocência e causam prejuízos inegáveis àqueles que indevidamente figuram como réus por anos em ação de improbidade, muitas vezes com patrimônio indisponível, com fundamento apenas em uma potencial responsabilidade, desacompanhada de provas mínimas ou mesmo da individualização de suas condutas.

Ao contrário da antiga redação da norma que era omissa, e buscando dar maior segurança jurídica e coibir tais casos, a LIA passou a prever de forma expressa que os sócios, os cotistas, os diretores e os colaboradores das empresas não respondem pelo ato de improbidade que venha a ser imputado à pessoa jurídica, salvo se, comprovadamente, houver participação e benefícios diretos, caso em que responderão nos limites da sua participação (Art. 3º §1º, incluído pela lei 14.230/21).

Aliado ao acima exposto, a nova redação do artigo 17, §6º, I, da lei 14.230/21, inseriu expressamente no regime jurídico da Lei de Improbidade Administrativa a necessidade de individualização da conduta pessoal supostamente praticada, não bastando alegações genéricas e temerárias como “possível responsabilidade” para justificar a qualidade de réu.

A qualidade de beneficiário direto do ato ímprobo deverá ser fundamentada e os supostos benefícios pessoais recebidos demonstrados igualmente, ainda que de forma mínima, não servindo suposições genéricas de que por ser sócio da empresa, por exemplo, foi diretamente beneficiado, posto que a ação ímproba não necessariamente gerará benéficos ao patrimônio da pessoa física, sobretudo quando a empresa desempenha de modo regular suas atividades e possui patrimônio suficiente para saldar eventual condenação.

Outro ponto importantíssimo trazido pela reforma, diz respeito a decretação de indisponibilidade de bens, pois, como é sabido, por vezes a ação temerária dos órgãos de fiscalização, com a chancela judicial, bloqueia bens expressivos sem que haja sequer indícios fortes da participação da pessoa afetada ou mesmo da existência de provas robustas do próprio ato de improbidade. É comum que ações que tramitaram por anos acabem julgadas improcedentes ou sejam anuladas nos tribunais superiores em razão do uso desmedido da LIA.

Justamente por isso, que a nova sistemática para a decretação de indisponibilidade de bens de terceiro, dependerá da demonstração da sua efetiva concorrência para os atos ilícitos apurados ou, quando se tratar de pessoa jurídica, da instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, a ser processado na forma da lei processual (art. 16, § 7º).

A pessoa física, portanto, somente poderá ter a indisponibilidade de bens decretada, caso fique demonstrado sua efetiva concorrência para os atos ilícitos apurados. Como efetiva concorrência, temos que o mínimo que se espera é que se demonstre a presença de fortes indícios de sua participação na prática do ato ímprobo, corroborados por elementos de provas e que somente poderá ser decretada após a oitiva do réu (art. 16, §3º).

No que se refere a sócios e dirigentes de pessoa jurídica, caso não figurem como réus, ou seja, caso não seja demonstrado ou alegado a participação direta desses no ato apurado, haverá a necessidade de instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ) para atingimento do patrimônio pessoal pelo instituto da indisponibilidade de bens.

Tal instituto é modalidade de intervenção de terceiros, cabível em todas as fases do processo, e permite desconsiderar a personalidade jurídica e, desse modo, responsabilizar pessoalmente os seus integrantes (sócios ou administradores) nos casos de abuso dela e outros previstos em lei.

Para GANACIN, o instituto do IDPJ procurou “afastar de vez a possibilidade de a desconsideração da personalidade jurídica ser pronunciada sem prévia oportunidade de defesa ao terceiro cujo patrimônio poderia ser afetado. Embora essa fosse uma prática flagrantemente inconstitucional, por desrespeitar as garantias do devido processo legal e do contraditório (Const., art. 5º, LIV e LV)”1. É justamente o que pretende a LIA ao prever a necessidade de sua instauração, garantir o direito de defesa e coibir arbitrariedades.

Ainda não sabemos qual será a interpretação a ser dada pelos tribunais, mesmo com a clareza da norma. Antes da publicação da nova lei que reformulou o instituto da improbidade administrativa, o STJ além de validar a inclusão dos sócios e administradores da PJ, pelo simples indício de participação da empresa no ato ímprobo apurado, validava entendimento como da prescindibilidade de “ajuizamento de ação própria para a desconstituição da personalidade jurídica”, e que esta poderia ser feita nos próprios autos, independente de pedido expresso, se ficasse evidente que seus sócios tiraram proveito do ato de improbidade administrativa, e que deveriam responder com seus bens particulares (REsp 1081138/PR).

A partir de agora, parece que o entendimento mais correto a ser adotado é o de que para a decretação da indisponibilidade de bens dos sócios da pessoa jurídica, será necessário a desconsideração da sua personalidade, cujas causas de fundamento devem ser as de abuso dela, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. Considerando que a primeira hipótese é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza, e a segunda, a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador, ou vice-versa; transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial (Art. 50 do Código Civil).

Para fins de aplicação da LIA, entendo que o desvio de finalidade caracterizado pela utilização da pessoa jurídica para prática de atos ilícitos de qualquer natureza, deve ser entendido de forma restritiva, ou seja, deve ser demonstrado que foi constituída para fins espúrios e não possui atividade regular.

Conforme observam Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery:

“A identificação do desvio de finalidade nas atividades da pessoa jurídica deve partir da constatação da efetiva desenvoltura com que a pessoa jurídica produz a circulação de serviços ou mercadorias por atividade lícita, cumprindo ou não o seu papel social, nos termos dos traços de sua personalidade jurídica. Se a pessoa jurídica se põe a praticar atos ilícitos ou incompatíveis com sua atividade autorizada, bem como se com sua atividade favorece o enriquecimento de seus sócios e sua derrocada administrativa e econômica, dá-se ocasião de o sistema de direito desconsiderar sua personalidade e alcançar o patrimônio das pessoas que se ocultam por detrás de sua existência jurídica.” (Junior, 2020)2

Da mesma forma, a confusão patrimonial deve ser analisada sob a ótica da tentativa de frustrar futura execução, como nos casos de dilapidação patrimonial. Não se justificando a indisponibilidade patrimonial dos sócios quando a empresa desenvolve regularmente sua atividade, e possui patrimônio suficiente para fazer frente a eventual condenação.

Em concussão, ao contrário do propalado por muitos de que a nova lei causará impunidade, entendo que ela veio racionalizar o uso da lei de improbidade administrativa, trazendo maior segurança jurídica aos empresários que de alguma forma atuam junto aos entes públicos.


1- GANACIN, João. Segunda Parte – Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica In: GANACIN, João. Desconsideração da Personalidade Jurídica no Processo Civil – Ed. 2020. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 20 de Novembro de 2021.

2- JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa. Art. 133 – Capítulo IV. Do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica In: JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa. Código de Processo Civil Comentado – Ed. 2020. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 20 de Novembro de 2021.


REsp 1081138/PR, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 14/10/2008, DJe 29/10/2008

JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa. Art. 133 – Capítulo IV. Do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica In: JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa. Código de Processo Civil Comentado – Ed. 2020. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 20 de Novembro de 2021.

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Dr. Michael Graça

Michael Graça é advogado especialista em Direito Eleitoral e Improbidade Administrativa pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP. Especialista em direito do Agronegócio. Técnicas de negociação pela FGV/SP.